MEDICAMENTOS NATURAIS

“...descobri há 6 meses que sou soropositivo, e os retrovirais me fazem muito mau, sou hipertenso e cardiaco, gostaria de saber se existe um medicamento natural para substituir o retroviral e que me faça sentir bem após seu uso...”

O texto acima é um excerto de um email que me foi enviado por um leitor. Respondo-lhe contando uma história vivida por mim, a qual é uma homenagem a um amigo que partiu.

Em tempos houve um grupo de seropositivos que fez amizade através de um chat. Convivíamos, fazíamos piqueniques, acampamentos e jantares. Havia amores e desamores, guerrinhas e brincadeiras. A única coisa que tínhamos em comum era o rótulo que a infecção pelo HIV nos deu. “Sidosos”. Nunca ninguém nos chamou tal, mas nós mesmos considerávamos este rótulo como o fato que vestíamos.
O “Cinzas”, era um tocador de viola e artista na recuperação de antiguidades em madeira. Dedicava-se às curas naturais. Era um infectado com o perfil de desenvolver o vírus muito lentamente. Pesquisava tudo, lia tudo e tinha o dom de irritar os médicos (donos do site) com as suas publicações sobre medicamentos naturais o que levou com que estes, fechassem o elo de contacto entre o grupo que acabou por se desfazer. Tomava medicamentos naturais importados de todo o mundo e proclamava a cura.

Eu defendia os medicamentos desenvolvidos pela ciência. Ia investigando os progressos, pensando em experiências de interrupção programada da medicação. Os medicamentos eram muito fortes e levaram-me várias vezes a ser internado num hospital. Foram os rins que começaram a dar sinal até que suspendi o medicamento que sabia estar a provocar esse problema. Depois foi o fígado que falhou com o novo medicamento que substituiu o que me fazia mal ao rins. Mais um internamento hospitalar, desta vez mais grave.
Nova troca de medicamentos e passados alguns anos o coração deu de si. Abriram-me, tiraram a safena da perna e puseram-na a levar sangue para ser bombeado com nova canalização.
Tem trabalhado e continuo a viver. O mau estar inicial que os comprimidos me causaram passou e já está esquecido, embora recorde que me custou bastante.

Continuo a viver com os medicamentos desenvolvidos pela ciência e tenho uma qualidade de vida relativamente boa.
"O Cinzas", que era um resistente e no qual o vírus progredia muito lentamente, seguiu o destino que a todos espera e morreu.

Passado pouco tempo após a sua morte, encontrei-me num congresso com o médico a quem o "Cinzas" punha os cabelos em pé, com as suas teorias e práticas da medicina natural. Já não o via há anos e cumprimentei-o. Começámos a conversar e a lembrar os tempos do chat onde o grupo se encontrava.
Perguntei-lhe se ainda se lembrava do "Cinzas", ao que respondeu afirmativamente. Tinha sido seu paciente e recordou as tropelias sobre as tomas e não tomas de medicamentos e misturas com remédios naturais.
A certa altura disse-lhe: “Sabe doutor, ele conseguiu curar-se e eliminar o vírus.”
O médico ficou atónito… direi mesmo embaraçado. Não sei o que lhe passou pela cabeça, mas certamente lembrou-se das discussões entre ele e o seu paciente sobre os benefícios da medicina natural no tratamento do HIV. Olhava para a sua expressão, com um certo gozo. Eu, como todos os elementos do grupo ficámos sentidos com a sua atitude de fechar o chat, restringindo a liberdade de falarmos. A relação de amizade já não era a de outrora.
Fiz uma pausa propositada enquanto o embaraço se mantinha e o silêncio imperava na conversa. Depois de algum tempo disse-lhe:
“… foi cremado a semana passada no cemitério dos Olivais”.
O médico respirou de alívio, e continuámos a conversar recordando bons velhos tempos.

A história que contei é real. A decisão a tomar pelo leitor que me escreveu o email, de procurar alternativas ao tratamento antiretroviral, pertence-lhe. Tem esse direito.
Poderá haver quem conte histórias diferentes. Esta é verdadeira, as outras poderão sê-lo ou não.

Um abraço para o “Cinzas” , cujas cinzas pertencem à mãe terra, esteja ele onde estiver.

Raul Almeida

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