CONVIVER COM O VIH - EM NOME DO PAI

Antes de eu nascer o meu pai dizia que gostava de ser pai duma rapariga. Porém nem ele estava preparado para ter esta filha nem eu teria, se pudesse, escolhido aquele pai. Apesar de sermos tão iguais no físico e no temperamento os meus olhos, decalcados dos dele, vieram embutidos noutra forma de olhar. E enquanto o meu pai defendia o seu mundo conservador que não admitia erros nem fraquezas, eu procurava a autenticidade dos dias e das pessoas. Éramos dois leões, nascidos em Agosto, em permanente rota de colisão.
Há 8 anos, pelo Natal, deparei-o particularmente abatido. Regresso a Lisboa e, mal chego, sou informada pela minha mãe, de que ele tinha sido internado na Clínica de Santa Maria. Dias depois regressou a casa mas logo a minha mãe me telefona, num sufoco, pedindo-me para regressar com urgência a Faro.
Mal chego a minha mãe estende-me os exames onde estava explícito que o meu pai era portador de VIH. Passo os exames ao meu filho e este olha para mim, tal como a minha mãe, como se o mundo lhes tivesse desabado em cima. Olhando os resultados penso que afinal o meu pai até era humano, sujeito às mesmas fragilidades de qualquer ser. E este pensamento faz-me senti-lo mais próximo. Porém era altura de agir e tomar as rédeas da situação. Explico que os exames têm que ter sempre uma contraprova mas que alguns cuidados devem ser tomados no imediato.
Dirijo-me à Clínica por onde passaram vários familiares meus e onde o meu pai, que sofria de colite crónica, várias vezes se tratou e era recebido com consideração. Todavia, desta vez, uma surpresa me esperava. Ao invés de ser recebida num gabinete médico, como era habitual, a médica responsável veio ter comigo ao corredor e, em pé, a uma distância "conveniente", refere-me que o meu pai era efectivamente seropositivo e que a Clínica não tinha condições para o ter lá ainda que reconhecesse que ele devia ser internado. Falou-me nas vantagens de ter um farmacêutico conhecido e deu-me mais alguns conselhos que eu já nem ouvia.
O VIH era para mim uma doença de apenas ouvir falar. Estava pois perante uma realidade que pouco conhecia. Faço contas à vida e penso: a minha mãe não tem condições, aos 77 anos, para lidar com esta situação até porque foi sempre uma pessoa emocionalmente frágil. O meu pai precisa de apoio mas a empregada não pode saber pois se sabe certamente não o quer tratar... Vou aviar os medicamentos e faço-o numa farmácia distante. Depois destruo as embalagens e passo-os para frascos onde anotei a posologia.
Regresso a Lisboa mas, ainda uma semana não tinha decorrido e já a minha mãe me dizia que o meu pai tinha piorado e que o tinha levado para a Clínica de Santa Maria. Fico alarmada com o facto da minha mãe ter levado o meu pai para lá. (Ela ignorava que a contraprova do VIH tinha sido feita e que a Clínica tinha tido a reacção que teve).
Chego a Faro pela madrugada. Vou para casa dos meus pais e de seguida dirijo-me à Clínica para saber do meu pai. Responde-me a médica que estava de serviço:
- o seu pai já cá não está! Foi para casa!
- Mas de casa venho eu, e um moribundo de 82 anos não pode ir a lado nenhum sozinho!
- Então não sei dele, ripostou.
Passo-me e ameaço-a com a comunicação social, o Ministro da Saúde a quem tinha fácil acesso e mais não sei o quê até que me vão acalmar para um gabinete e acabam por descobrir que transferiram o meu pai para o Hospital de Faro onde foi operado aos intestinos. Dirijo-me ao Hospital de Faro onde efectivamente tive todo o apoio e acompanhamento. O meu pai estava ligado à máquina mas não fui vê-lo. Estava emocionalmente exausta. Só ao fim de três dias tive coragem para o fazer.
Ver o meu pai tão vulnerável e pensar na doença do VIH que ele admitia sempre ser para os "outros", põe-me um nó na garganta. Ao invés do homem distante que me intimidava ele era afinal um ser humano com as suas fragilidades e os seus pecados. Um ser humano que eu podia ter amado de outra maneira. Esta constatação enche-me dum sentimento mais próximo que alguma vez tive.
Chego junto à sua cama e digo:
- pai, sou a Lídia e estou aqui. E nunca mais vou deixar de estar.
Sinto que o corpo dele estremece à minha voz mas não sei se me ouviu.
Quando dez dias depois recebo a notícia do seu falecimento choro por tudo aquilo que nunca chorei e pelas minhas lágrimas que só naquela altura teimaram em cair. Porque estivemos distantes podendo estar tão perto...
Mas agora as minhas lutas já não serão contra ele mas também por ele, por todos aqueles que os preconceitos derrubaram, por todos os que se sentiram diferentes porque houve pessoas que acharam que há mundos perfeitos que impõem regras e ditam valores esquecendo outras realidades mais condicentes com a natureza humana.
Lutarei também contra outra espécie de discriminação que se faz a pessoas como eu a quem se chamam lunáticas por acreditarem que as lutas valem a pena e que não devem existir muros entre as pessoas.

Lídia Soares


3 comentários:

  1. Sinto muito Lídia pelo falecimento do teu pai, concerteza que a idade, outras complicações e toda a sua fragilidade contribuiu para que esse desfecho se precipitasse.

    Lamentável é que profissionais de saúde continuem a ter procedimentos como os que expões e estou contigo nesta luta e acredito que um dia será vencida esta ignorância.

    Beijos
    Branca

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  2. Grato pela partilha do testemunho. O texto transporta-nos para dentro do acontecimento como se o estivéssemos vivendo e mostra a ignorância dos profissionais de saúde à época do acontecimento. Contudo e através de informações que me vão sendo dadas e que vou denunciando, casos semelhantes demonstrativos da ignorância de muitos profissionais de saúde continuam a acontecer nos dias de hoje em alguns hospitais fora dos grandes centros urbanos. Este testemunho é a evidência probante de que o estigma e os medos baseados na ignorância ainda são uma forte realidade nos dias de hoje. A causa do VIH é de todos e só conseguiremos vencer se nos unirmos e lutarmos em conjunto. Abraço R.A.

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  3. Olá. Vim visitar seu blog. Há muito leio seus comentários no blog do Sibarita.
    Adorei os textos.
    Hoje, tempos depois do fato relatado neste post, posso dizer que sinto muito por sua perda e pela forma como aconteceu.
    Li vários textos, todos brilhantemente escritos.
    Parabéns!

    beijos

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